“Este episódio é, sem dúvida, o mais controverso do poema. Quem é este Velho, o que representa ele? É fora de dúvida que ele representa a voz do bom senso (…) e nas suas palavras reflete toda uma corrente de opinião contrária à prossecução da viagem para a Índia, considerada como envolvendo demasiados riscos. Politicamente, o Velho está do lado de todos quantos se opunham a que a nossa expansão se fizesse para Oriente e propunham, como alternativa, que ela se processasse no Norte de África. Sabemos que as duas correntes tiveram existência histórica e corresponderam a interesses diversos que opunham a velha nobreza à nova burguesia ascendente. Consoante o peso político das duas classes, assim a expansão se ia fazendo, quer para o Norte de África (por exemplo com o rei D. Afonso V), quer para Oriente (por exemplo com D. João II e D. Manuel). Claro que à burguesia interessava mais a Índia, como fonte de matérias-primas que lhe assegurariam o monopólio das transações comerciais na Europa e, em simultâneo, um reforço do poder político junto de reis, desejosos de, para reforçar o seu poder pessoal, destruir o poder dos nobres.
Aparentemente, porque não condena as palavras do velho, porque insiste por diversas vezes em que se trata de um homem experiente e digno de crédito (porque dotado de autoridade), Camões identificar-se-ia com as suas palavras, condenando assim, de certo modo, a viagem de Vasco da Gama. Tal geraria uma contradição inexplicável, num poema destinado a glorificar aquilo que, no conjunto da História de Portugal, constituía o seu maior título de glória: justamente a viagem de Vasco da Gama, escolhida para ação central do poema.
António José Saraiva entende ser o ‘velho do Restelo’ a voz do próprio Camões, erguendo-se, como poeta humanista, acima do acontecimento histórico que vai relatar, criticando-o como fonte de desgraças, mortes, perigos. No fundo, segundo este crítico, Camões teria preferido que a aventura portuguesa se fizesse no Norte de África – e aduz, entre outros, como argumentos, a quase inexistência de referências, ao longo d’ Os Lusíadas, ao infante D. Henrique e às descobertas anteriores à viagem do Gama e a insistência, junto de D. Sebastião, para que vá também ele combater no Norte de África. No fundo, tais posições seriam reflexos daquilo que António José Saraiva designa de ‘ideologia cavaleiresca’ de Camões e que seria inerente, de resto, à sua condição de nobre e de combatente africano.
O episódio polariza, pois, uma espécie de antítese à tese que o poema constitui: a de que, no mar, o Homem encontra a ocasião das ocasiões para ultrapassar as suas fraquezas.
Ora, independentemente de saber qual a posição de Camões face ao rumo que deveria ser ou ter sido o da nossa expansão, a verdade é que a solução desta contradição aparente que representa o episódio do Velho do Restelo se encontra no próprio poema: os navegadores, em nome da lealdade ao seu Rei, à Pátria, não se deixam demover e partem, apesar de tudo. Herói é aquele que é movido por um impulso de tal modo forte que não escuta o que a razão prática e o bom senso lhe aconselham; e que, consciente, embora, do aspecto irracional de um empreendimento, para ele avança, cheio de força interior que lhe fará vencer os diferentes obstáculos. Porque, dirá mais tarde Camões, em contraponto às palavras do velho do Restelo, a imortalidade conquista-se.
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso
(IX, est. 90)
O progresso do Homem faz-se na luta, muitas vezes absurda, contra os obstáculos tão grandes que se lhe oferecem. Segundo Óscar Lopes, a fala do velho do Restelo ‘formula não a antítese ao tema central da epopeia, mas a tese a que a epopeia se contrapõe’ – isto é, a viagem do Gama demonstrará à evidência que a tese do velho do Restelo de que a sorte do Homem é ‘mísera’, porque dominada pela ambição, de que o progresso é um falso progresso formado sobre falsos valores, de que toda a ambição conduz à desgraça, à queda (como a de Ícaro), está errada: apesar do Velho, Vasco da Gama chegará ao fim da sua viagem e demonstrará que ela não constitui um recuo, uma queda, mas um avanço, um passo em frente na conquista de um ideal de Homem superior à sua fragilidade física, à contingência material de ‘bicho da terra’.” (in op. cit.)

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